sexta-feira, 3 de outubro de 2014

Internauta da Mangueira, Suburbia e Sexo e as Negas: como a Rede Globo gosta de fazer linchamento da imagem da mulher negra


Estamos no centenário da escritora Carolina Maria de Jesus. Até agora não vi a Rede Globo debater em seus telejornais com a sociedade brasileira o valor literário e intelectual de uma mulher negra, favelada e que teve sua obra literária traduzida em 13 países no mundo. Parece-me que esse tipo de narrativa social e cultural da vida de personagens negras, personagens que marcaram de forma indelével nossa formação não tem importância midiática para quem representa tão bem o pensamento da burguesia racista brasileira.  A Rede Globo, na nossa concepção, nunca ofereceu espaço para o brasileiro conhecer nossas escritoras negras e seu potencial intelectual. Pelo contrário, o que assistimos sempre na sua grade de programação são apresentadoras eurodescendentes nos seus telejornais. São médicas brancas de classe média nos ensinando como cuidar da saúde como podemos encontrar no Programa Bem Estar e ainda várias apresentadoras loiras do tipo da Angélica, Ana Maria Braga e Xuxa.
É raro encontramos nessa empresa uma negra que seja convidada para ser comentarista de economia, política, ciência ou tecnologia, aliás, confesso que nunca vi uma negra fazendo esse papel na qualidade de comentarista.  A Globo poderia explicar esse caso de racismo explicito, visto que tanto nas novelas como nos programas jornalísticos, pode-se perceber claramente as desigualdades raciais nas oportunidades de trabalho  oferecidas para a mulher negra nessa empresa de comunicação. Isso é tão visível para o senso comum, que qualquer pessoa poderá notar que somente a mulher branca pode ser a madame rica nas novelas,  pensadora, escritora, intelectual e empresária bem sucedida, sobrando apenas o espaço da favela, das periferias e carnaval para que essa mulher negra possa mostrar seu corpo e sensualidade. Para essa emissora de televisão, a mulher negra seria apenas um corpo sensual para ser explorado e abusado como se fosse uma mercadoria que se usa e depois é descartada.
  Na programação dessa TV o padrão de  beleza europeu  sempre foi considerado o belo  e  esse modelo estético  foi  imposto para destruir o outro padrão de origem africana. Nesse sentido, a nossa beleza negra aparece diante dos olhos televisivos dos arautos da casa grande como algo que é feio. Portanto, se é feia a nossa estética negra como eles pensam. Essa imagem da mulher negra também merece  ser  ridicularizada e aparecer na casa dos brasileiros para representar o  grotesco e o lado risível da televisão como podemos deduzir na boca banguela e acompanhada de um negrume extravagante naquele rosto do humorista global, que dizia nos sábados à noite: “eu sou a cara da riqueza”. Era dessa  forma  que  o Programa Zorra Total  fazia  seu linchamento público contra a imagem da mulher negra, através desse  nosso modelo racial  nojento e perverso, ou seja, o de fazer as pessoas  aprenderem  a  ser  racistas de  forma  lúdica, humilhando  o  nosso povo negro por meio de um quadro humorístico  como  esse que só interessava mesmo a  quem  queria  destruir nossa  autoestima.
Confesso, sinceramente, que não gosto de assistir nada do que a Globo faz quando se trata de representar no campo da ficção as mulheres negras, visto que percebemos que as práticas sexuais racistas do colonizador ainda estão por demais impregnadas nas mentalidades do novelistas e produtores de minisséries, como essa  que estamos  assistindo agora. Não gosto por razões óbvias, já que a Globo é pródiga em fazer da mulher negra a eterna mucama nas suas novelas onde geralmente atrizes negras de talento, a rigor, sempre são obrigadas a serem as serviçais de madames brancas, bonitas e de classe média.  Léa Garcia, Chica Xavier e Ruth de Souza sabem muito bem de toda essa história de subalternidade na hierarquia racial dos novelistas dessa emissora de televisão. Todavia, a luta para tirar a mulher negra dessa forma de inferioridade social e racial também existe no Brasil, tendo em vista que a atriz Zezé Motta na sua carreira profissional já chegou a recusar papéis em que a mulher negra apareceria de forma negativa e estereotipada.  Por que as mulheres negras só podem aparecer nas novelas, com a vassoura não mão e lenço na cabeça?
É verdade que na novela “Da Cor do Pecado” não vimos essa imagem racista da negra empregada doméstica. Entretanto, a atriz Taís Araújo era pobre e vendedora de raízes medicinais na cidade de São Luiz do Maranhão onde ela conhece um rapaz belo, branco e filho de um empresário carioca o ator Reynaldo Gianecchini, no papel de Paco. O racismo construído nessa representação social da mulher de origem africana é proposital e ainda reproduz o que  a sociedade brasileira racista quer perpetuar,  já que  na cabeça  do autor dessa novela  não  se pode aceitar  que  Preta, nome  da personagem protagonizada pela atriz Taís Araújo fosse a filha do Afonso Lambertini, um rico empresário interpretado por Lima Barreto e  Reynaldo Gianecchini  fosse o pobre e vendedor de raízes medicinais  de uma feira maranhense.  Assim sendo, o que fica também na cabeça do nosso povo brasileiro para quem assiste uma produção televisiva como essa é a ideia de branqueamento racial, uma vez que para a personagem  Preta  a  solução  para crescer socialmente na vida é se apaixonar por um rapaz  da elite branca. Como podemos notar, a Rede Globo já mostra qual o caminho social e racial que as nossas adolescentes e jovens negras pobres devem seguir e ter como horizonte de vida. A felicidade para a raça negra, nas entrelinhas dessa novela, é algo que só podemos encontrar se for no mundo dos brancos bem sucedidos.
“Ela fugiu de uma infância marcada pela miséria.” Era assim que a Globo destilava o seu repertório de representações racistas e discriminações contra o corpo da mulher negra e sua imagem pública.  Refiro-me aquela minissérie Suburbia em que uma jovem negra e pobre, andando de top e short minúsculos onde trabalhava num posto de gasolina na cidade grande, chamando atenção de rapazes pelo seu jeito de mulher gostosona. A chamada que essa emissora de televisão em tela fazia para que as pessoas vissem a saga dessa personagem negra para obter audiência era horrível.  O pai dela com a cara de sofredor na condição de miserável, ao lado da mãe numa carvoaria. O cenário de desesperança era perfeito na sua intenção racista, já que essa minissérie continha uma grande violência simbólica por defender ideologicamente a noção de que onde há negros não existe progresso e desenvolvimento humanos, restando apenas como alternativa de vida  para a  menina Conceição  virar  dançarina de funk  e depois empregada doméstica para superar  a  sua vida  miserável   como a  minissérie em tela trouxe  para  os telespectadores da Globo.
 A personagem Suburbia da atriz Erika Januza poderia estudar de noite. Depois ela poderia trabalhar de dia em alguma grande universidade pública na condição de secretária e ainda terminar uma faculdade com muita luta e determinação como muitas mulheres negras fazem por esse  Brasil afora,  sem que fosse necessário  caminhar com um short  bem  curtinho   enfinhado na bunda  para  dar audiência. Entretanto, a narrativa dignificante mencionada não interessa aos detratores da imagem do nosso povo negro.  Logo, ela é uma construção política minha, assumindo aqui a intenção clara de provocar a emissora para que ela não repita esse tipo de cenário em que a raça negra só pode parecer em papéis já pré determinados pelo imaginário racista. Sim, Suburbia  ainda foi na adolescência  presa pela polícia e acusada de roubo, o que lhe fez ganhar uma internação provisória na FEBEM. Por que a mulher negra tem que ter esse tipo de história retratada na televisão?
 A personagem Suburbia ainda tem sua cópia fiel nesse quesito voltado para a destruição moral da imagem da mulher negra no Brasil. Quem não se lembra da minissérie As Cariocas em que a única mulher que fazia bico como digitadora era a Internauta da Mangueira, personagem protagonizada pela atriz Cintia Rosa. Uma mulher negra que morava no Morro da Mangueira e que deixou de trabalhar para ficar traindo o marido na internet, usando apenas calcinha e sutiã na frente da tela de um computador.  Ora, quando vi a Rede Globo  lançar a  minissérie  Sexo e  as Negas já sabia que o cenário da história tinha que ser parecido com suas últimas programações em que  a mulher negra foi protagonista, a exemplo da Internauta da Mangueira e  da  minissérie Suburbia.
As mulheres negras, na verdade, são sempre jogadas para espaços urbanos marcados pela pobreza, prostituição, tráfico de drogas, violência sexual, luxúria e muita sensualidade. Logo, não me interessa saber desse tipo de história pobre de imaginação, simplificadora e reducionista da imagem da mulher negra, já que são temáticas entediantes, desumanizadoras  e  geralmente  contadas sob o ponto de vista do homem branco machista, racista e preconceituoso. A Globo poderia ser mais inteligente e não subestimar a nossa população negra, achando que iríamos ficar calados diante de tamanha agressão racista  e degradação da imagem coletiva da mulher negra no mundo da ficção, visto que esse tipo de ataque a imagem das mulheres negras tem influências extremamente negativas na personalidade de cada cidadão deste país. Faço aqui a minha crítica a esse tipo de programa e, ao mesmo tempo, quero me solidarizar com todas as negras que repudiaram essa empresa,  escrevendo textos na internet contra a exibição da minissérie Sexo e as Negas.
Tentando limpar a merda que a emissora fez um cantor foi chamado ao Programa Encontro com Fátima Bernardes, para afirmar essa pérola: “nega é um carinho. Não é  preconceito”. Somente o cantor Carlinhos Brown faria esse papel para garantir seus lucros, já que o mesmo faz parte do The Voice Brasil e, assim, tinha que dar  sua colaboração burra para essa classe dominante continuar fazendo esse tipo de minissérie racista, conservadora e machista. Aproveito esse debate, também, para repudiar a atitude da Faculdade Zumbi dos Palmares que já convidou o senhor Miguel Falabella para fazer parte do Troféu Raça Negra, tendo em vista que uma atitude como essa soa verdadeiramente como um insulto ao movimento de mulheres negras, além de ser  um  grande  desserviço a  todos nós que lutamos com dignidade contra o racismo. Tem muita coisa nebulosa por trás desse convite, uma vez que ele apareceu mesmo no meio das críticas que internautas e ativistas do movimento negro estão fazendo contra a exibição dessa minissérie.
 Assim, diante do exposto, temos que pensar e agir para mudar as relações raciais de opressão, democratizando os meios de comunicação para que as TVs contem histórias positivas da raça negra, incluindo aí  nossas pautas de lutas  antirracistas do movimento negro para que os operadores da comunicação televisiva, bem como os novelistas e diretores de minisséries de qualquer emissora de  TV  possam nos respeitar. Nós negros e negras conscientes dos nossos direitos humanos e constitucionais temos o direito de ver outras narrativas, pois queremos assistir  na televisão brasileira as nossas atrizes negras fazendo o papel de médicas, de advogadas, de engenheiras, de professoras universitárias e de empresárias bem sucedidas também. Ou não existe mulher negra assim no Brasil, seu Miguel Falabella?


Autor: Jair Nguni é historiador e ativista do Movimento Negro em Campina Grande, Paraíba.