Estamos no centenário da escritora Carolina Maria de
Jesus. Até agora não vi a Rede Globo debater em seus telejornais com a
sociedade brasileira o valor literário e intelectual de uma mulher negra,
favelada e que teve sua obra literária traduzida em 13 países no mundo.
Parece-me que esse tipo de narrativa social e cultural da vida de personagens
negras, personagens que marcaram de forma indelével nossa formação não tem
importância midiática para quem representa tão bem o pensamento da burguesia
racista brasileira. A Rede Globo, na
nossa concepção, nunca ofereceu espaço para o brasileiro conhecer nossas escritoras
negras e seu potencial intelectual. Pelo contrário, o que assistimos sempre na sua
grade de programação são apresentadoras eurodescendentes nos seus telejornais. São
médicas brancas de classe média nos ensinando como cuidar da saúde como podemos
encontrar no Programa Bem Estar e ainda várias apresentadoras loiras do tipo da
Angélica, Ana Maria Braga e Xuxa.
É raro encontramos nessa empresa uma negra que seja
convidada para ser comentarista de economia, política, ciência ou tecnologia, aliás,
confesso que nunca vi uma negra fazendo esse papel na qualidade de
comentarista. A Globo poderia explicar
esse caso de racismo explicito, visto que tanto nas novelas como nos programas
jornalísticos, pode-se perceber claramente as desigualdades raciais nas
oportunidades de trabalho oferecidas
para a mulher negra nessa empresa de comunicação. Isso é tão visível para o
senso comum, que qualquer pessoa poderá notar que somente a mulher branca pode
ser a madame rica nas novelas, pensadora, escritora, intelectual e empresária
bem sucedida, sobrando apenas o espaço da favela, das periferias e carnaval
para que essa mulher negra possa mostrar seu corpo e sensualidade. Para essa
emissora de televisão, a mulher negra seria apenas um corpo sensual para ser
explorado e abusado como se fosse uma mercadoria que se usa e depois é
descartada.
Na programação dessa TV o padrão de beleza europeu sempre foi considerado o belo e esse
modelo estético foi imposto para destruir o outro padrão de
origem africana. Nesse sentido, a nossa beleza negra aparece diante dos olhos
televisivos dos arautos da casa grande como algo que é feio. Portanto, se é
feia a nossa estética negra como eles pensam. Essa imagem da mulher negra também
merece ser ridicularizada e aparecer na casa dos
brasileiros para representar o grotesco
e o lado risível da televisão como podemos deduzir na boca banguela e acompanhada
de um negrume extravagante naquele rosto do humorista global, que dizia nos
sábados à noite: “eu sou a cara da riqueza”. Era dessa forma que o
Programa Zorra Total fazia seu linchamento público contra a imagem da
mulher negra, através desse nosso modelo
racial nojento e perverso, ou seja, o de
fazer as pessoas aprenderem a ser racistas de forma lúdica, humilhando o nosso
povo negro por meio de um quadro humorístico como
esse que só interessava mesmo a quem queria destruir nossa autoestima.
Confesso, sinceramente, que não gosto de assistir nada do
que a Globo faz quando se trata de representar no campo da ficção as mulheres
negras, visto que percebemos que as práticas sexuais racistas do colonizador
ainda estão por demais impregnadas nas mentalidades do novelistas e produtores
de minisséries, como essa que estamos assistindo agora. Não gosto por razões óbvias,
já que a Globo é pródiga em fazer da mulher negra a eterna mucama nas suas
novelas onde geralmente atrizes negras de talento, a rigor, sempre são
obrigadas a serem as serviçais de madames brancas, bonitas e de classe média. Léa Garcia, Chica Xavier e Ruth de Souza sabem
muito bem de toda essa história de subalternidade na hierarquia racial dos
novelistas dessa emissora de televisão. Todavia, a luta para tirar a mulher
negra dessa forma de inferioridade social e racial também existe no Brasil,
tendo em vista que a atriz Zezé Motta na sua carreira profissional já chegou a
recusar papéis em que a mulher negra apareceria de forma negativa e estereotipada.
Por que as mulheres negras só podem
aparecer nas novelas, com a vassoura não mão e lenço na cabeça?
É verdade que na novela “Da Cor do Pecado” não vimos essa
imagem racista da negra empregada doméstica. Entretanto, a atriz Taís Araújo
era pobre e vendedora de raízes medicinais na cidade de São Luiz do Maranhão
onde ela conhece um rapaz belo, branco e filho de um empresário carioca o ator Reynaldo
Gianecchini, no papel de Paco. O racismo construído nessa representação social
da mulher de origem africana é proposital e ainda reproduz o que a sociedade brasileira racista quer
perpetuar, já que na cabeça do autor dessa novela não se
pode aceitar que Preta, nome
da personagem protagonizada pela atriz Taís Araújo fosse a filha do
Afonso Lambertini, um rico empresário interpretado por Lima Barreto e Reynaldo Gianecchini fosse o pobre e vendedor de raízes medicinais de uma feira maranhense. Assim sendo, o que fica também na cabeça do
nosso povo brasileiro para quem assiste uma produção televisiva como essa é a
ideia de branqueamento racial, uma vez que para a personagem Preta
a solução para crescer socialmente na vida é se
apaixonar por um rapaz da elite branca.
Como podemos notar, a Rede Globo já mostra qual o caminho social e racial que
as nossas adolescentes e jovens negras pobres devem seguir e ter como horizonte
de vida. A felicidade para a raça negra, nas entrelinhas dessa novela, é algo
que só podemos encontrar se for no mundo dos brancos bem sucedidos.
“Ela fugiu de uma infância marcada pela miséria.” Era
assim que a Globo destilava o seu repertório de representações racistas e
discriminações contra o corpo da mulher negra e sua imagem pública. Refiro-me aquela minissérie Suburbia em que
uma jovem negra e pobre, andando de top e short minúsculos onde trabalhava num
posto de gasolina na cidade grande, chamando atenção de rapazes pelo seu jeito
de mulher gostosona. A chamada que essa emissora de televisão em tela fazia
para que as pessoas vissem a saga dessa personagem negra para obter audiência
era horrível. O pai dela com a cara de
sofredor na condição de miserável, ao lado da mãe numa carvoaria. O cenário de
desesperança era perfeito na sua intenção racista, já que essa minissérie
continha uma grande violência simbólica por defender ideologicamente a noção de
que onde há negros não existe progresso e desenvolvimento humanos, restando
apenas como alternativa de vida para
a menina Conceição virar dançarina
de funk e depois empregada doméstica para
superar a sua vida miserável como a minissérie em tela trouxe para os
telespectadores da Globo.
A personagem Suburbia
da atriz Erika Januza poderia estudar de noite. Depois ela poderia trabalhar de
dia em alguma grande universidade pública na condição de secretária e ainda terminar
uma faculdade com muita luta e determinação como muitas mulheres negras fazem
por esse Brasil afora, sem que fosse necessário caminhar com um short bem
curtinho enfinhado na bunda para dar audiência. Entretanto, a narrativa
dignificante mencionada não interessa aos detratores da imagem do nosso povo
negro. Logo, ela é uma construção
política minha, assumindo aqui a intenção clara de provocar a emissora para que
ela não repita esse tipo de cenário em que a raça negra só pode parecer em
papéis já pré determinados pelo imaginário racista. Sim, Suburbia ainda foi na adolescência presa pela polícia e acusada de roubo, o que
lhe fez ganhar uma internação provisória na FEBEM. Por que a mulher negra tem
que ter esse tipo de história retratada na televisão?
A personagem Suburbia
ainda tem sua cópia fiel nesse quesito voltado para a destruição moral da
imagem da mulher negra no Brasil. Quem não se lembra da minissérie As Cariocas
em que a única mulher que fazia bico como digitadora era a Internauta da
Mangueira, personagem protagonizada pela atriz Cintia Rosa. Uma mulher negra
que morava no Morro da Mangueira e que deixou de trabalhar para ficar traindo o
marido na internet, usando apenas calcinha e sutiã na frente da tela de um
computador. Ora, quando vi a Rede Globo lançar a
minissérie Sexo e as Negas já sabia que o cenário da história
tinha que ser parecido com suas últimas programações em que a mulher negra foi protagonista, a exemplo da
Internauta da Mangueira e da minissérie Suburbia.
As mulheres negras, na verdade, são sempre jogadas para
espaços urbanos marcados pela pobreza, prostituição, tráfico de drogas,
violência sexual, luxúria e muita sensualidade. Logo, não me interessa saber
desse tipo de história pobre de imaginação, simplificadora e reducionista da
imagem da mulher negra, já que são temáticas entediantes, desumanizadoras e
geralmente contadas sob o ponto
de vista do homem branco machista, racista e preconceituoso. A Globo poderia
ser mais inteligente e não subestimar a nossa população negra, achando que
iríamos ficar calados diante de tamanha agressão racista e degradação da imagem coletiva da mulher
negra no mundo da ficção, visto que esse tipo de ataque a imagem das mulheres
negras tem influências extremamente negativas na personalidade de cada cidadão
deste país. Faço aqui a minha crítica a esse tipo de programa e, ao mesmo
tempo, quero me solidarizar com todas as negras que repudiaram essa empresa, escrevendo textos na internet contra a
exibição da minissérie Sexo e as Negas.
Tentando limpar a merda que a emissora fez um cantor foi
chamado ao Programa Encontro com Fátima Bernardes, para afirmar essa pérola:
“nega é um carinho. Não é preconceito”. Somente
o cantor Carlinhos Brown faria esse papel para garantir seus lucros, já que o
mesmo faz parte do The Voice Brasil e, assim, tinha que dar sua colaboração burra para essa classe
dominante continuar fazendo esse tipo de minissérie racista, conservadora e
machista. Aproveito esse debate, também, para repudiar a atitude da Faculdade
Zumbi dos Palmares que já convidou o senhor Miguel Falabella para fazer parte
do Troféu Raça Negra, tendo em vista que uma atitude como essa soa
verdadeiramente como um insulto ao movimento de mulheres negras, além de ser um grande desserviço a todos nós que lutamos com dignidade contra o
racismo. Tem muita coisa nebulosa por trás desse convite, uma vez que ele
apareceu mesmo no meio das críticas que internautas e ativistas do movimento
negro estão fazendo contra a exibição dessa minissérie.
Assim, diante do
exposto, temos que pensar e agir para mudar as relações raciais de opressão,
democratizando os meios de comunicação para que as TVs contem histórias
positivas da raça negra, incluindo aí nossas
pautas de lutas antirracistas do
movimento negro para que os operadores da comunicação televisiva, bem como os
novelistas e diretores de minisséries de qualquer emissora de TV possam nos respeitar. Nós negros e negras
conscientes dos nossos direitos humanos e constitucionais temos o direito de
ver outras narrativas, pois queremos assistir
na televisão brasileira as nossas atrizes negras fazendo o papel de médicas,
de advogadas, de engenheiras, de professoras universitárias e de empresárias bem
sucedidas também. Ou não existe mulher negra assim no Brasil, seu Miguel Falabella?
Autor:
Jair Nguni é historiador e ativista do Movimento Negro em Campina Grande,
Paraíba.